Curtas da ilha do Pico – parte I – A Cerca dos Frades

Curtas da ilha do Pico – parte I – A Cerca dos Frades

Qualquer viagem ao Pico é inviável sem o contacto diário com a paisagem e o imaginário vínico.

Antes do avião aterrar fica dado o alerta para o que aí vem: observa-se pela janela que a pista se encontra construída, a metros do mar, no meio de infinitos currais de pedra onde está plantada a vinha.

Esta paisagem, classificada como património da humanidade, ir-nos-á acompanhar dia e noite durante a nossa estadia na ilha. Está em todo o lado, por toda a ilha, exceto na subida à montanha mais alta de Portugal. O basalto negro das curraletas em conjunto com a imponente montanha-vulcão exercem uma presença magnética. Talvez seja possível dar a volta à ilha sem que se perca de vista uma vinha.

Mesmo que o corpo nos peça mais sol e mar do que descobertas vínicas, a chegada à ilha desperta o desejo de ir conhecer in loco a efervescente movida do vinho açoriano. As opções são imensas: ir conhecer a quase pronta nova adega da Azores Wine Company, as vinhas do projeto Adega do Vulcão, os licorosos Czar do produtor Fortunato Garcia, as gamas da Curral Atlantis e o seu projeto de nova adega, visitar o novo laboratório de enologia, entre vários outros assuntos pendentes. Não é possível evitar: todas as viagens ao Pico são viagens de contacto direto com a cultura da vinha.

Todas as opções referidas e várias outras ficaram adiadas, no entanto, tratou-se de dois assuntos importantes: visitar a adega cooperativa da ilha do Pico provando novidades e colheitas antigas e ir conhecer os vinhos do novo produtor Tito Silva.

Feito o contacto telefónico, Tito Silva, à boa maneira hospitaleira picarota, convida-nos imediatamente para uma prova na sua “adega”. No Pico, os seus habitantes chamam adega a todas as casas que ficam no meio das vinhas. De facto, muitas dessas casas, no passado, seriam mini-adegas artesanais de família, mas hoje são lindas casas de verão, recuperadas, onde se reúnem amigos e familiares para grandes almoçaradas.

Ficou, então, marcado encontro para a sua “adega” no lugar dos Arcos, a umas centenas de metros do mar e da vinha que fez nascer o projeto. Um lugar idílico, rodeado de currais e pequenas casas de basalto negro, onde não passou um carro, nem se viu vivalma nas duas horas que ali se passaram ao balcão.

A conversa, claro, andou à volta do vinho. Tito conta-nos que a sua vinha, ali ao lado, no Lajido de Santa Luzia, fica onde se situou uma área de cultivo que se julga ter pertencido aos frades franciscanos que muito contribuíram para a cultura do vinho do Pico. Foi ainda descoberta uma cerca em pedra. Estava encontrado o nome para os seus vinhos: a Cerca dos Frades. Os grandes vinhos normalmente têm sempre uma boa história por trás e estes não fogem à regra.

Da vontade de fazer vinhos, resultou uma primeira edição com 650 garrafas do A Cerca dos Frades branco 2018, praticamente esgotada, que julgo só ser possível encontrar na prateleira do magnífico Rei dos Queijos em Ponta Delgada. Com a colaboração do amigo e enólogo picaroto Paulo Machado (enólogo e sócio da Azores Wine Company) e do produtor Fortunato Garcia (licoroso Czar) estava iniciada a aventura.

Após a área de vinha ser alargada, em 2019 é lançada a segunda edição do A Cerca dos Frades e a estreia do A Cerca dos Frades Terrantez do Pico. São estes os “convidados” da tarde solarenga. As edições de 2019 são já produzidos na sua nova adega, ainda em construção, com Paulo Machado a continuar aos comandos da enologia, revelando todo o seu saber e experiência no terroir açoriano.

Chega-nos primeiro ao copo A Cerca dos Frades branco 2019 (8475 garrafas produzidas), um blend das três castas açorianas. Muito novo, aroma a mar, fresco, fruta branca em segundo plano, acidez cortante e algo incisivo. Muito nervo e frescura. Sem madeira. Tem grande presença com longo final de boca. Um branco em plena juventude que não esconde a sua origem. Ótimo e melhorará muito nos próximos meses. Preço: cerca de 20€.

De seguida é-nos apresentado A Cerca dos Frades Terrantez do Pico 2019 (1130 garrafas produzidas). Um vinho que impressiona desde o primeiro contacto. Sentido de identidade fortíssimo. No nariz aparece com iodo, austero, alguma fruta branca exótica. Rusticidade polida, no ponto, por um quase impercetível toque da madeira, sensação finíssima de untuosidade e volume de boca, salinidade, especiaria, acidez, estrutura firme, secura e profundidade. Equilíbrio fantástico. Potencial de evolução tremendo. Um grande vinho em qualquer lado e uma entrada direta para o topo dos vinhos dos Açores. Preço: cerca de 35€.

A conversa seguiu, a temperatura do Terrantez do Pico foi subindo e o vinho sempre a mostrar-nos algo mais. Ficamos, nós e a conversa, “presos ao copo”, felizes e inebriados.

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