Prova de Terrantez do Pico – Serviços de Desenvolvimento Agrário de São Miguel

Prova de Terrantez do Pico – Serviços de Desenvolvimento Agrário de São Miguel

Era uma tarde normal de trabalho até que o telefone tocou. Do outro lado um convite inesperado para uma prova inusitada: provar colheitas antigas de Terrantez do Pico nos Serviços de Desenvolvimento Agrário de São Miguel (SDASM). Naquele dia. Dali a pouco.

Admito que todos os minutos foram contados até à saída do trabalho. A coisa não era para menos. Os exemplares mais antigos engarrafados são raros desde que foram lançados e agora, passada cerca de uma década desde os primeiros produzidos, são praticamente inexistentes. As produções rondaram as 500 garrafas nos primeiros anos. Restam ínfimas dezenas ou mesmo apenas poucas unidades de cada ano.

A história do vinho nos Açores remonta ao início do povoamento. 500 anos de história repletos de altos e baixos. Talvez mais baixos do que altos. Baixos tão baixos que quase fizeram a vinha açoriana desaparecer do mapa agrícola destas ilhas. Contudo, até hoje, houve sempre a arte e engenho necessários para recomeçar novos e prósperos ciclos.

O mais recente ciclo começou por volta do final da primeira década do sec. XXI. Os protagonistas principais são vários e realmente importantes. Conhecidos e competentes enólogos, como António Maçanita, Anselmo Mendes, Diogo Lopes, Paulo Laureano, Paulo Machado, entre outros e produtores como a Azores Wine Company (pioneira no lançamento de vinhos com base em monocastas brancas autóctones dos Açores) são alguns dos nomes que aparecem justamente em todas as reportagens e escritos sobre o tema, esquecendo quase sempre a referência a um local muito importante para este renovado interesse nos vinhos açorianos. Este local tão importante é o referido SDASM.

Se recuarmos a 2010, existiam cerca de uma centena de cepas da variedade de Terrantez do Pico, estando estas videiras plantadas nos campos de experimentação do SDASM. Foi lá que se fizeram os primeiros ensaios com a casta Terrantez do Pico, bem como, vários estudos genéticos de castas tintas e brancas, entre elas as outras duas autóctones açorianas (Arinto dos Açores e Verdelho).

Os anos em que estas castas estiveram ao “abandono” conduziu à sua progressiva degradação genética e sanitária, com consequências negativas para a sua produtividade. Situação mais grave no caso do Terrantez do Pico, devido ao reduzido número de plantas, existindo um forte perigo de desaparecimento desta casta.

Assim, em 2006 iniciou-se o Projeto de Seleção Genética das Castas Tradicionais do Açores com a identificação e marcação de plantas, tendo-se assinalado 109 plantas de Terrantez do Pico e procedido em 2007 à enxertia de 94 clones nos campos experimentais dos SDASM, sendo a técnica responsável pelo projeto a Eng. Susana Mestre.

A produção de uvas iniciou-se em 2009 com a respetiva vinificação. Com a colaboração do enólogo António Maçanita, em 2011, vinificou-se 1350kg de uvas de Terrantez do Pico, elaborando-se um vinho que recebeu 92 pontos da revista Wine Spectator. A colaboração continuou em 2012 (400kg) e 2013 (1415kg) sendo que nestes anos as uvas foram vinificadas na adega dos SDASM. Em 2014 nova colaboração com o enólogo António Maçanita (desta vez já com a chancela da Fita Preta Vinhos, 550kg). A partir de 2015 as uvas passaram a ser leiloadas aos interessados tendo atingido o preço máximo de 7,05€ por Kg em 2019 e o mínimo em 2020 de 2,66€

A instalação de campo de Terrantez do Pico no SDASM em 2007 permitiu, no fundo, que a casta não desaparecesse irremediavelmente, tornando-se, talvez, a casta rainha dos brancos dos Açores no que concerne à qualidade e autenticidade dos vinhos com ela elaborados.

Desde aí, os vinhos de Terrantez do Pico têm sido, recorrentemente, contemplados com as melhores avaliações de entre os açorianos, inclusive na critica internacional. São vinhos que transmitem a essência do terroir açoriano.

Foram algumas dessas primeiras edições que tive a oportunidade (talvez única) de provar.

A prova iniciou-se no laboratório do SDASM. Presentes estavam muito poucos privilegiados: técnicos, o Diretor e o intruso. Percebeu-se que não era um momento habitual. As garrafas são tão poucas que havia um burburinho fora do comum a cada uma que se abria, como se estivéssemos todos a fazer arqueologia, prestes a provar algo que alguns poucos provaram em novo e quase nenhuns tiveram oportunidade de provar com anos de guarda em cima.

A prova começou com o primeiro espumante feito em terras açorianas. Sem nome e sem rótulo: um espumante terrantez 100% de 2011. Aromas a alperce e mel dominavam o vinho. Algo evoluído e sem bolha, ainda assim num belo equilíbrio na boca, deixando-se beber languidamente. Salino. Conserva alguma acidez. Boa experiência.

Abro um parênteses para outros três vinhos que foram provados. Um vinho branco de 2007 resultante das primeiras experiências de vinificação nos SDASM. Era um manual de defeitos. Eram tantos que é difícil enumerá-los. Foram também provadas duas experiências feitas com uvas híbridas: um vinho de Seibel e outro de Isabella. Gostei bastante do primeiro.

Nisto dos vinhos com alguma idade, especialmente brancos com idade e sem histórico, é preciso estar preparado para encontrar muitos dissabores e desilusões, qual trabalho de arqueologia em que ao abrir a caixa do tesouro apenas se encontram cacos do que outrora foi uma grande obra de arte. Estava a começar assim a tarde.

Seguiram-se as estrelas da companhia. Começamos pelo Terrantez do Pico 2011. Todo ele bastante esbatido. Sem defeitos, mas tudo o que ele tinha estava ao longe, sem chama.

O próximo foi o Terrantez do Pico 2013. Contido de aroma a fruta de polpa branca, lichias, amêndoa amarga, floral, grande finesse, acidez elevada, longo final de boca. Pouco evoluído. Grande vinho. A tarde estava ganha se acabássemos com este copo na mão.

Passamos ao Terrantez do Pico 2014. De cor mais carregada e com nariz e boca mais intensos em relação ao 2013. Fruta cítrica, flor de laranjeira, alguma rusticidade, salino, ligeiros apetrolados, tudo em grande tensão, acidez elevada e final de boca longo. O ano muito chuvoso talvez explique alguma coisa. Dos melhores exemplares dos Açores provados até hoje.

No final da tarde, foi unânime que o 2013 e 2014 foram os preferidos de todos os presentes. Quem preferiu o equilíbrio e finesse adorou o 2013, enquanto os adeptos de maior rusticidade e carácter vincado adoraram o 2014, pois é um vinho mais telúrico.

É verdadeiramente interessante o facto de todos estes vinhos terem sido feitos com uvas da ilha de São Miguel provenientes do SDASM, o que vem comprovar o potencial desta ilha para a produção de vinho. Seria um bom exercício compará-los com os Terrantez do Pico agora produzidos com uvas da ilha do Pico e cujas plantas vieram, originalmente, dos campos do SDASM.

Por fim, agradecer ao Diretor do SDASM, Engenheiro Luís Estrela e ao Engenheiro António Medeiros o qual, pacientemente, explanou os seus conhecimentos e respondeu às muitas perguntas realizadas. Um obrigado ainda maior a todos os que fazem parte do SDASM. Sem eles, quem sabe, o Terrantez do Pico já não existiria.

Categorias Wine Experience
Tags: AÇORES

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